Newsletter de Economia da Saúde – 13° Edição – Sustentabilidade de sistemas de saúde versus judicialização

Sustentabilidade de sistemas de saúde versus judicialização

Como decisões paralelas afetam as ações integrais de serviços em saúde no Brasil

Texto: Marina Sousa- IPTSP/UFG

Um sistema de saúde sustentável deve garantir que todos os cidadãos tenham acesso adequado e equitativo a serviços de saúde de qualidade, independentemente de sua renda ou localização geográfica. Isso contribui para reduzir as desigualdades em saúde e melhorar a saúde geral da população. Mas os caminhos que a Judicialização da Saúde tem tomado podem estar afetando esse acesso. A coordenadora de Estudos e Pesquisas em Saúde, da diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fabíola Sulpino Vieira, publicou recentemente um artigo sobre o assunto: “Judicialization and right to health in Brazil: a trajectory of matches and mismatches”, na Revista de Saúde Pública.

A pesquisadora relata que a judicialização afeta o direito à saúde no Brasil de várias maneiras. Embora o sistema judicial promova o direito à saúde quando o Estado falha em garantir o acesso à saúde, o que parece por um lado bom, por outro pode desequilibrar toda a balança. O artigo descreve como o sistema judicial compromete o acesso a medicamentos da população com as determinações de aquisição de produtos não incorporados, por exemplo, no Sistema Único de Saúde (SUS). “Quando um medicamento não está disponível no SUS, os pacientes podem recorrer ao sistema judicial para obter acesso a ele. No entanto, isso pode levar a uma sobrecarga do sistema judicial e a uma alocação desigual de recursos, já que apenas alguns pacientes têm acesso a medicamentos que não estão disponíveis para a maioria da população. Além disso, a aquisição desses medicamentos pode ser mais cara do que a aquisição de medicamentos incorporados no SUS, o que pode comprometer o financiamento do sistema de saúde como um todo”, é o que conta Fabíola Sulpino Vieira.

Na prática juízes atuam em casos concretos, em processos que são majoritariamente individuais, e dificilmente consultam os gestores do SUS sobre os recursos disponíveis para o financiamento de medicamentos ou buscam informação em outras fontes a esse respeito. Os magistrados examinam a demanda de uma pessoa e os documentos que constam do processo, entre eles, a prescrição médica, com uma visão focada no indivíduo, e não se tem a dimensão do todo e de que os recursos disponíveis precisam financiar a oferta de medicamentos a toda a população. Ao não olhar o todo, o risco é o de penalizar ainda mais as pessoas de menor renda, que dependem exclusivamente do SUS para terem acesso a medicamentos. “Isso porque o orçamento público ficará mais limitado, uma vez que parte significativa dos recursos está sendo destinada à aquisição de medicamentos por demanda judicial. O gestor público não consegue suplementar o orçamento de uma hora para outra”, afirma.

O estudo mostra que, em 2019, as ações judiciais consumiram 25,2% dos recursos do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica, sendo que 21% desses recursos foram destinados a apenas dez medicamentos. O texto sugere que o sistema judicial precisa orientar seu controle sobre o cumprimento de preceitos constitucionais e legais em políticas públicas, especialmente em política fiscal, dada sua influência no financiamento do SUS. Ela ainda ressalta que, mesmo diante todos os avanços percorridos na assistência farmacêutica nas últimas décadas, o país está longe de uma ampla cobertura pública no acesso a medicamentos em todo o território nacional. Segundo dados das Contas de Saúde, 87% das despesas com medicamentos no país, em 2019, foram financiadas diretamente do bolso dos pacientes. Além disso, vários estudos, com base em dados das pesquisas de orçamentos familiares, têm mostrado que o gasto em medicamentos consome uma parcela proporcionalmente maior da renda das famílias mais pobres. Dessa forma, ainda é preciso ampliar o financiamento público da oferta de medicamentos e a destinação de recursos pela via judicial pode produzir mais desigualdades para todo o sistema.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 reconhece a saúde como um direito universal e o SUS é um sistema público e gratuito, que visa atender todas as pessoas que necessitem de assistência médica, mas é um sistema que possui fragilidades, principalmente no quesito de orçamento, e quando a judicialização entra em ação, ela também é um meio de desequilibrar todo o processo em relação àqueles que não tem recursos para buscar a justiça, portanto, essa situação pode agravar ainda mais as desigualdades existentes no sistema de saúde brasileiro.

A recomendação, segundo Fabíola Sulpino Vieira é que o sistema judicial oriente seu controle sobre o cumprimento de preceitos constitucionais e legais em políticas públicas, especialmente em política fiscal, dada sua influência no financiamento do SUS. “O Judiciário precisa exercitar a macrojustiça em questões relacionadas ao direito à saúde. A microjustiça já vem sendo feita quando os juízes determinam que o gestor público garanta ao cidadão, por exemplo, os medicamentos que deveriam estar disponíveis nas unidades de saúde do SUS, mas que, por alguma razão, não estavam disponíveis quando o usuário deles precisou. A macrojustiça é mais complexa, contudo, fundamental”.

O financiamento das políticas públicas por meio das quais se concretizam direitos é questão extremamente importante e o Judiciário precisa ampliar o seu olhar para essa questão. O meio pelo qual o Estado deve garantir o direito à saúde é com a implementação de políticas econômicas e sociais, dentre elas, a política de saúde, que tem como principal instrumento a provisão de bens e serviços de saúde pelo SUS. Se o SUS permanece subfinanciado e, em determinados momentos, é até desfinanciado por decisões envolvendo a política fiscal, impacta-se fortemente o direito à saúde. Fabíola ainda exemplifica que, até o momento, não se percebe uma preocupação do Judiciário com essa questão. Assim, é preciso repensar o papel do Judiciário na proteção do direito fundamental à saúde. “Esse debate precisa acontecer e é por aí que podemos começar. Não será com uma atuação pulverizada em todo o país, determinando a compra de medicamentos não incorporados ao SUS, em um processo paralelo e concorrente com o das instâncias do SUS, que se promoverá o direito universal, igualitário e integral às ações e serviços de saúde em nosso país”. Assim, o papel do sistema judicial na proteção dos direitos sociais seria mais adequado se ele parasse de interferir no conteúdo das políticas e começasse a atuar no controle de sua formulação para garantir o respeito às normas constitucionais e legais.

De olho no futuro

Fortalecer a participação da sociedade civil na organização do SUS é chave fundamental para que o sistema siga seguro e sustentável, principalmente nas tomadas de decisão sobre a incorporação de tecnologias em saúde, pois é assim que se pode assegurar transparência e fiscalização para saber exatamente onde e com o que o dinheiro vem sendo aplicado.

O controle social também é positivo para propor soluções para melhorar a assistência, evitar práticas de corrupção e integrar principalmente vários setores da sociedade civil, promovendo assim colaborações mais abrangentes e que garantem verdadeiramente os serviços às necessidades da população e os objetivos do SUS enquanto sistema universal. Os principais mecanismos de financiamento do SUS incluem orçamento geral da União que é repassado para estados municípios, contribuições sociais como a Seguridade Social (CSLL, COFINS e PIS/PASEP), arrecadação de impostos, como o Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), e entre outros, ou seja, para todo exercício fiscal há o empenho do orçamento que já foi pensado para para financiar a oferta dessas tecnologias em saúde. Logo, e descapitalizar os recursos, como por exemplo com a incorporação de novos medicamentos, a não ser que esses produtos sejam reduzidos ou que haja uma substituição de tratamentos mais caros por outros mais baratos, duas hipóteses pouco prováveis, os recursos serão insuficientes para financiar toda a lista de medicamentos e de novas tecnologias. “ Então a participação social é fundamental no processo decisório. “Assim, critérios explícitos e transparência do processo decisório são imprescindíveis e precisam ter a sua aplicação fortalecida”, finaliza a pesquisadora.

O artigo “Judicialization and right to health in Brazil: a trajectory of matches and mismatches” de Fabiola Sulpino Vieira pode ser lido na íntegra aqui.

Fabíola Sulpino Vieira é Doutora em Saúde Coletiva e Mestre Profissional em Economia da Saúde (2006) pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.  Ela também é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental; Coordenadora de Estudos e Pesquisas em Saúde e Diretoria de Estudos e Políticas Sociais – Disoc, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

 REBRATS  

A cidade de Brasília (DF) recebe mais uma vez o Congresso da REBRATS (Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde) –  em sua IV edição o encontro será entre os dias 16 a 20 de outubro de 2023.

Neste ano um dos eixos será a sustentabilidade de sistemas de saúde  estudos comparativos de tecnologias em saúde incluindo síntese de evidências, avaliação econômica e de impacto orçamentário; modelos de precificação de tecnologias em saúde; cálculo e adoção de limiares de custo-efetividade, impacto orçamentário e modificadores; modelos de remuneração e de acesso gerenciado ou compartilhamento de risco; uso da ATS como ferramenta para apoiar desenvolvimento tecnológico e produção nacional; ATS em diferentes segmentos: vigilância em saúde; hospitalar; regulação em saúde; saúde suplementar.

O período de submissão de trabalhos para o congresso já começou e se estende até o dia 20 de agosto. Para este ano, IV Congresso da Rebrats traz o seguinte tema:  O papel da ATS no enfrentamento dos desafios contemporâneos em saúde. Os trabalhos poderão ser submetidos por meio do formulário.

Com base nos tópicos abordados no Congresso da REBRATS, vamos introduzir em nossas futuras discussões da Newsletter Economia da Saúde da UFG, em colaboração com o Ministério da Saúde, temas relacionados à sustentabilidade do SUS. Um exemplo notável é a recente reportagem acima com a renomada pesquisadora, Fabíola Sulpino Vieira do Ipea. Fique atento, pois a próxima edição promete oferecer insights valiosos que você não vai querer perder!

  *A Newsletter Economia da Saúde está em sua 13° Edição e é uma parceria entre a Universidade Federal de Goiás (UFG) com o Ministério da Saúde (MS) por meio do Curso de Especialização em Economia da Saúde da UFG

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