Jornal aborda artigo sobre a carteira nacional de serviços para a APS sob consulta

A jornalista Claudia Colucci abordou nesta terça-feira, 27 de agosto, em sua coluna na Folha de São Paulo, o artigo sobre a carteira nacional de serviços para a APS sob consulta, escrito por Lígia Giovanella (Coordenadora da Rede de Pesquisas em Atenção Primária à Saúde da Abrasco) e Cassiano Franco (médico de família e comunidade, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e professor do Departamento de Medicina em APS, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Confira a coluna na íntegra:

É competência do médico da atenção primária à saúde identificar se o paciente tem posse de arma de fogo e orientá-lo como guardá-la com segurança?

A questão consta em um item de proposta do Ministério da Saúde sobre uma nova carteira de serviços essenciais que o cidadão deve encontrar em uma unidade de saúde da atenção primária (APS) e tem gerado discussões acaloradas entre os profissionais de saúde.

A proposta foi aberta a críticas e sugestões por meio de uma consulta pública que terminou nesta segunda (26). Mais de 1.700 contribuições foram feitas.

Em um primeiro momento, muitos relacionaram a questão sobre a posse de arma à escalada de um discurso armamentista por parte do governo de Jair Bolsonaro (PSL). Mas, na verdade, essa discussão é antiga, apareceu pela primeira vez em um instrumento de avaliação da atenção primária à saúde do Ministério da Saúde em 2010.

Ocorre que à época o documento (PCATool), validado em 2004 por Barbara Starfield nos EUA, passou por adaptação cultural no Brasil e esse item ficou de fora porque se entendeu que era uma realidade que fazia sentido aos norte-americanos. Agora, na avaliação de pesquisadores, isso pode virar norma.

“Uma coisa é uma pergunta em um questionário de um pesquisador qualquer. Outra é inserir na norma nacional dando por certo, por correto, que o porte de armas deve ser ou será difundido. Um absurdo!”, afirmam Lígia Giovanella, pesquisadora da Fiocruz, e Cassiano Mendes, médico de família e professor na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Daniel Knupp, presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), diz que esse tema gerou muito debate numa rodada inicial de avaliação da carteira proposta pelo ministério.

“Realmente é extremamente polêmico. Foi um dos poucos que marcamos no formulário que não se aplicava [à realidade brasileira].”

Já Rodrigo Olmos, professor assistente da Faculdade de Medicina da USP, acredita é possível que o assunto posse de armas se torne mais frequente no Brasil daqui para frente e talvez seja algo que os médicos da atenção primária tenham que abordar nas consultas.

O médico de família Erno Harzheim, secretário de atenção primária à saúde do ministério, diz que o item “identificação quanto a posse de arma de fogo por parte do adulto e orientação sobre como guardá-la com segurança” está presente no instrumento de avaliação da APS validado nos Estados Unidos, Brasil e diversos países.

“Faz parte de uma estratégia de prevenção de acidentes. Os livros de medicina de família que estudamos para melhorar os atendimentos clínicos às pessoas citam essa como uma estratégia de promoção da segurança da criança e do adolescente evitando injúrias físicas.” Entre 2010 e 2017, 450 crianças com menos de 15 anos morreram por acidentes com armas de fogo no país.

Segundo Harzheim , esse e os demais itens enviados para a consulta pública poderão ser alterados ou retirados, após análise técnica das respostas e argumentações recebidas.

Em artigo publicado no site da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), os pesquisadores Ligia Giovanella e Cassiano Mendes fazem outras críticas à proposta da nova carteira de serviços da atenção primária.

Por exemplo, dizem que o foco da proposta está na busca de melhor eficiência, quando deveria ser em proporcionar melhor acesso e qualidade aos usuários do SUS.

“A busca da eficiência em si poderia reduzir custos, mas não gera qualidade. Qualidade resulta de um conjunto amplo de iniciativas articuladas e seu alcance em geral implica em uso de recursos adicionais. O foco nos aspectos econômicos faz subentender que a carteira tem por objetivo, não primordialmente melhorar a qualidade, mas servir como instrumento para estabelecer contratos com o setor privado”, diz trecho do artigo.

Outro ponto levantado pelos pesquisadores é que a especialidade “medicina de família e comunidade” parece ter sido abolida na carteira de serviços proposta pelo ministério.

“O termo utilizado é médico de família, sem comunidade. Não se trata apenas de desconsiderar o atributo de orientação comunitária, mas também de mudar o foco dessa especialidade médica que é crucial para a APS integral de qualidade. O descaso pela denominação da especialidade na carteira enfraquece a identidade e a posição dos médicos de família e comunidade.”

Daniel Knupp, da SBMFC, vê mais a supressão da palavra “comunidade” do texto mais como descuido do que uma questão conceitual. Para ele, as críticas dos pesquisadores não se justificam. “É uma carteira de serviços, a referência para um escopo mínimo de ações esperadas das equipes de saúde da família. A verdade é que a maioria hoje em dia não passa nem perto de fazer o que está ali.”

Erno Harzheim também rebate as críticas. Em relação à falta da palavra “comunidade”, diz que por se tratar de uma consulta pública, foi usado apenas “médico de família”, que é um termo mais popular. “Foi uma opção de estilo, não é a letra fria da lei ou de textos acadêmicos. O ministério tanto reconhece a especialidade MFC [médico de família e comunidade], que é esse o termo usado na medida provisória do Médicos pelo Brasil.”

Sobre a questão da eficiência versus qualidade, Harzheim diz que a proposta da carteira de serviços não é de reduziros custos em saúde, já que eles são crescentes e continuarão sendo, segundo vários estudos.

“A proposta é ser uma das ferramentas que contribuirá para a gestão de saúde, otimizando os cuidados e tornando-os mais eficientes, fortalecendo a clínica da APS lá no local onde as pessoas vivem e necessitam de cuidados de saúde”, afirma.

Polêmicas à parte, o fato é que a consulta pública sobre o tema já foi um avanço. Debater com a população, profissionais e gestores de saúde conceitos como acesso avançado, horário estendido, agendas dinâmicas, trabalho em equipe e o papel do profissional enfermeiro e da enfermagem é uma boa oportunidade para que as pessoas cheguem um pouco mais perto da atenção primária, a porta de entrada dessa complexidade chamada SUS e que agora (antes tarde do que nunca) caiu no gosto da saúde suplementar também.

Fonte: https://www.abrasco.org.br

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