Num importante momento de fragilização das políticas sociais no país e às vésperas da 16ª Conferência Nacional de Saúde, os princípios do Sistema Único de Saúde – SUS – são mais do que sua marca; são a própria materialidade da justiça social e precisam ser consolidados. Com esse espírito, cerca de 50 lideranças científicas prestigiaram o lançamento oficial do documento de contribuição da Abrasco aos debates da Conferência “Pela garantia do direito universal à saúde no Brasil”, realizada na manhã da sexta-feira, 02 de agosto, na sede da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS/OMS), em Brasília (DF).
“A Abrasco retorna à OPAS quarenta anos depois da sua fundação para seguir na construção de uma saúde voltada para a maioria da nossa população. Em 1979 foram 53 docentes que assinaram a ata de fundação. Hoje, somos mais de 80 programas de pós-graduação, além de cursos de graduação e dos profissionais nos serviços. Nossa expectativa é que essa conferência traga muita força e renovação para pensarmos o SUS e os desafios do sistema de saúde” anunciou Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco, abrindo a sessão e explicando sua dinâmica.
Anfitriã da atividade, Socorro Gross, representante da OPAS no Brasil, saudou os presentes e ressaltou o valor do documento. “Será uma ferramenta fundamental para os grupos de trabalho da 16ª CNS por evidências e posições de forma clara e acessível” apontou a médica costarriquense, que destacou as inúmeras parcerias de cooperação técnica entre a Agência e a Associação, em especial com a Rede de Pesquisas em Atenção Primária em Saúde (Rede APS) e a capacidade da Associação em mobilizar sua rede de pesquisadores das mais diferentes regiões, áreas temáticas e perspectivas.
Ao iniciar a condução da sessão, Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), ressaltou que enquanto muitos estiveram céticos e até contrários à realização da Conferência, o Conselho e as principais entidades estavam trabalhando para a sua concretização. “A partir de domingo, não será nem o início nem o final, mas sim mais uma parte de processo. O lançamento desse documento também é parte dessa construção”, disse ele, demarcando que as adversidades seguirão após a conclusão da etapa nacional. “Tenham certeza de que haverá setores que não vão gostar dos resultados e precisaremos estar preparados para enfrentar as adversidades, pois esses setores não brincam em serviço. Faremos isso com muita alegria, otimismo e entusiasmo”.
Princípios em perspectiva: Três presidentes da Abrasco fizeram as falas centrais, nas quais apresentaram o documento e os desafios da Atenção Primária à Saúde (APS) e do controle social.
“Citando Rubem Alves, vivemos momentos em que não há razões para o otimismo, mas sim para a esperança. A retomada da esperança no nosso país é necessária para enfrentar os ataques que acontecem e estão por vir. Para nós, a esperança acontece em torno de um projeto, e qualquer projeto nacional de desenvolvimento que exclua a saúde é insuficiente para mobilizar o conjunto da sociedade brasileira” iniciou Luis Eugenio de Souza.
Docente do ISC/UFBA e presidente da Abrasco 2012 – 2015, ele apresentou os eixos norteadores do documento. A discussão sobre o modelo de desenvolvimento nacional pautado na autonomia e nos interesses definidos por brasileiros e brasileiras, de maneira independente e cuidadoso com o meio ambiente, distante da lógica colonial e mercantilista que tanto marcam a inserção brasileira no cenário internacional e que se reproduz no setor saúde.
A consolidação do SUS e a queda de braço entre a visão mercantilista e financista e a visão social foi outro ponto de objeto da fala de Luis Eugenio, que reforçou a importância de retomar a ideia da seguridade social conforme formulada pelo Movimento Sanitário no processo constituinte e que segue sob ameaças cada vez maiores, como já sinalizado pelo ministro da economia Paulo Guedes, que trabalha para a desvinculação total do orçamento da União, agravando ainda mais os efeitos negativos já sofridos nas áreas da saúde e educação por conta da Emenda Constitucional 95/2016.
O docente encerrou ressaltando que a Conferência é um momento privilegiado para debater projetos capazes de superar divergências e alcançar a unidade entre as forças que construíram e constroem o SUS. “Para a Abrasco, essas diretrizes podem realimentar a esperança em torno de um novo olhar sobre o desenvolvimento e a Saúde que o Brasil precisa”.
Luiz Augusto Facchini fez uma leitura crítica do atual estágio da Estratégia Saúde da Família (ESF), que tem tido suas bases fragilizadas em sucessivas mudanças desde a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2017. “Há uma perspectiva de romper com a lógica da territorialidade, e conseguir fazer do trabalho da ESF algo extremamente mercantilizado, baseado em desempenho. Defender não apenas os princípios do SUS, mas também as características e do desenho da ESF são necessidades vitais para a manutenção das condições mínimas da vida de mais de 130 milhões de brasileiros” afirmou o pesquisador do Programa de Pós-Graduação de Epidemiologia da UFPel e presidente da Abrasco 2009 – 2012.
A APS é a grande inovação da saúde brasileira nesses 30 anos de SUS, segundo o abrasquiano, e conseguiu aproveitar a rede já instalada e desenvolvê-la para o cuidado da população, principalmente nos fatores de atenção relativamente simples, mas fundamentais para a saúde, como o acompanhamento pré-natal e o controle de indicadores de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. No entanto, é necessário, juntamente com a continuidade das equipes, a efetivação da integralidade. “Se tivermos o compromisso da garantia da completude do cuidado para todas as pessoas conseguimos com um investimento simples ampliar as condições de vida de nossa população. Esperamos que esse documento sirva para nos ajuda a localizar e discutir esses esforços” concluiu Facchini.
Vamos à luta, mas quais parceiros? Pesquisador do Instituto de Saúde (IS-SESSP) e presidente da Abrasco 2006-2009, José da Rocha Carvalheiro fez uma retrospectiva dos processos conferenciais até ao limiar da 16ª Conferência, carinhosa e politicamente apelidada de Oitava mais oito (8ª+8).
“Das primeiras sete conferências, que foram conduzidas quase que exclusivamente pelo Ministério da Saúde, até a Oitava e as mais recentes, fomos construindo um modo todo nosso de fazer as conferências. As primeiras foram chapa branca, mas também tiveram algumas incorporações importantes e que fizeram nós chegarmos aqui” disse Carvalheiro, destacando que a primeira ideia de um sistema de saúde do país surgiu na 5ª Conferência, e que na Sétima houve a presença de funcionários do INAMPS, momento que marcou as primeiras tentativas de unificar as ações entre os Ministérios da Saúde e da Previdência Social e que modelaram a assistência até o surgimento do SUS, que teve seu desenho construído justamente na 8ª Conferência.
A inclusão dos usuários no processo conferencial e a saída do setor privado do evento são outras passagens da emblemática edição, que pavimentou o debate da saúde no processo constituinte. Carvalheiro ressaltou que, das inúmeras propostas de reforma apresentadas nos corredores do Congresso Nacional em 1988, foi a Reforma Sanitária a única a conseguir emplacar sua maior proposição, o SUS. A construção do sistema seguiu em debate nas conferências posteriores, como a 9ª Conferência, da qual Carvalheiro foi o relator e que, em meio ao debate da municipalização da saúde, enfrentou também os desafios no cenário político nacional. Por decisão da plenária, a bandeira do “Fora Collor” foi incluída na versão final do documento.
“Aqui, nessa atividade preliminar da 16ª Conferência, temos de nos perguntar: qual a perspectiva da conferência para com seus mecanismos de consenso? Sim, vamos à luta, mas quais parceiros, quais redes? São problema a equacionar. Mas nós somos 26 estados e um Distrito Federal e 5.570 municípios, que reúnem com mais de 2,600 milhões de trabalhadores da saúde, afora a rede de conselheiros, conselheiras e ativistas. Somos muitos e podemos ser ainda mais” concluiu.
Coube a Renato Tasca, coordenador de Sistemas e Serviços de Saúde da Representação da OPAS/OMS no Brasil, fazer os comentários, ao qual destacou as estratégias do setor privado em insistir em desacreditar o SUS sob o signo do discurso da ineficiência. “Passar a responsabilidade do SUS para o setor privado e mantendo o papel provedor do Estado é tudo o que eles querem, e no geral é um discurso que cola. Por isso precisamos trabalhar melhor o diálogo com a população e repensar se os modelos de participação e controle social não estão superados, e abrir um melhor diálogo com os intermediários, seja a mídia ou a nova leva de influenciadores digitais” ponderou.
As diversas entidades e instituições fizeram-se presentes nas contribuições das 15 intervenções do momento do debate, contando com as falas de Erika Aragão, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres); Lúcia Souto, presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes); Oswaldo Tanaka, diretor da Faculdade de Saúde Pública da USP; Fernanda Sobral, pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC); Marília Louvison, pela Associação Paulista de Saúde Pública (APSP); Cristiani Machado, vice-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); Ronald Ferreira dos Santos, ex-presidente do CNS; os abrasquianos Marcio Florentino (UFSB); Mário Scheffer (FM-USP), Geraldo Lucchese, Edsaura Pereira (UFG) e o graduando Giovanny Klein (UFAC).
Fonte: https://www.abrasco.org.br